Entrevista com o fundador e CEO Ricardo Félix: as origens e os desafios da Logistema - parte 1

 

Nesta primeira parte da entrevista, Ricardo Félix, Fundador e CEO, recorda os primeiros passos da logística em Portugal na década de 1990, a criação da Logistema, e o projeto que alavancou as operações logísticas de uma das maiores empresas de Portugal.

 

- A Logistema foi fundada em 1993, sendo pioneira na área de consultoria de logística e supply chain. Em que contexto surge a Logistema? Pode descrever o mercado de há 30 anos?

Nós criámos a Logistema em 1993, num momento histórico peculiar, quer das pessoas que a criaram – em particular eu, como mentor e fundador, quer do ponto de vista socioeconómico de Portugal, que entra para a comunidade europeia em 1986, quer da Europa, quando é assinado o tratado de Maastricht, estabelecendo a livre circulação de pessoas e bens dentro da Comunidade Europeia, em 1992.

Antes de 1992, as trocas económicas entre os países da Comunidade Europeia faziam-se transpondo fronteiras, com tudo o que isso significava em termos de atrito ao movimento com despachos alfandegários – uma exportação entre Portugal e Espanha podia demorar até duas semanas. Depois do tratado de Maastricht, esta mesma exportação podia ser feita em 24 horas. Portanto, estas circunstâncias desencadearam uma enorme mudança em todas as atividades de movimentação de bens e capitais e transformaram a estrutura logística instituída nesse tempo, como já tinha acontecido nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Para nós, fundadores, que já tínhamos começado a fazer prestação de serviços logísticos como 3PL - entre 1989 e 1992, por exemplo, para a pioneira Johnson & Johnson que externalizou a sua operação logística da sua divisão de consumo em 1989 - tornou-se óbvio que este novo paradigma na Europa criaria a possibilidade de desenvolver os serviços logísticos integrando o transporte e o armazenamento no mesmo prestador de serviços.

Os primeiros tempos foram bastante difíceis porque navegávamos em águas desconhecidas num mercado emergente. Mas ganhámos de imediato a atenção e o apreço de empresas que se estavam a estabelecer também por volta dessa altura, como o Grupo Luís Simões que sendo um operador de serviços de transporte  já tinha começado a dar os primeiros passos ali por volta de 1990 na integração de armazenamento e transporte nos seus serviços para um conjunto limitado dos seus clientes.

 

Naquele tempo, a logística era um conceito emergente. 

 

- Quais eram as áreas de intervenção da Logistema nos seus primeiros anos de ação?

A matriz original da Logistema era das Operações, e por isso entendemos que iríamos ter 3 vertentes essenciais à implementação das soluções que seriam desenvolvidas no nosso portfólio. Por um lado tudo aquilo que tinha a ver com processos, dimensionamentos, layouts, infraestruturas - armazenamento e transporte -, gestão de frotas e otimização de rotas. Definimos também a componente dos recursos humanos, uma vez que todos os projetos implicam uma transformação nos processos e procedimentos afetando a organização e competências. E finalmente, uma vertente que nós valorizámos muito desde o primeiro dia, a vertente dos sistemas de informação e da sua informatização.

Portanto, quando arrancámos em 1993 sabíamos que o mercado estava em transformação e precisava da abordagem que aportasse know-how e que incluísse as 3 vertentes que a Logistema oferecia.

 

camiao luis simoes Fonte: luis-simoes.com

 

 - Quem foi o primeiro cliente da Logistema?

Curiosamente, o nosso primeiro cliente foi o Grupo Luís Simões, ainda que o nosso primeiro projeto foi para a Compal. O Grupo Luís Simões tinha interesse em desenvolver uma operação com a Compal e recomendou-nos para um projeto integral. Foi o nosso primeiro projeto de raíz.

A Compal tinha um problema sério do ponto de vista logístico. O Centro de Distribuição do Porto era um armazém com um piso térreo (sem pavimento) muito mal iluminado, com muitas dificuldades do ponto de vista de acessibilidade e com métodos e processos muito rudimentares. Na altura, a Compal foi adquirida pelo Grupo Nutrinveste, e procuravam modernizar rapidamente e expandir a operação da Compal.

Este projeto não foi exatamente um greenfield, mas um brownfield num armazém que agora faz parte das infraestruturas do Grupo Luís Simões, em Vila-Nova de Gaia. O edifício era uma fábrica de têxtil, de camisas, se não estou em erro, que convertemos no Centro de Distribuição Norte da Compal.

Na transformação da antiga fábrica para a plataforma logística foram abordadas e intervencionadas as 3 vertentes que já referi: desde a infraestrutura, passando pelos processos, à implementação da nossa primeira versão de WMS, o Warepack.

Mais tarde, em 1996, a Logistema desenvolveu e implementou a primeira grande plataforma logística do Grupo Luís Simões, no Carregado.

 

... foi uma enormíssima jogada de risco, por parte do Grupo Luis Simões, e incentivada por nós. 

 

- Como é que surgiu a oportunidade de desenvolver a primeira plataforma logística do Grupo Luís Simões?

O Grupo Luís Simões tinha na época a sua primeira plataforma, próxima de Santa Iria da Azóia, nuns armazéns alugados pela Volvo Auto Sueco, hoje Grupo Nors. Os armazéns eram vários e contíguos, com más condições de acesso, com o pé direito relativamente baixo, com a acessibilidade também razoavelmente dificultada e com cais desnivelados, que tinham sido construídos com estruturas amovíveis. Enfim, era uma plataforma com bastantes limitações. Tinha, no entanto, uma dimensão de 9000 m², o que para a época era de facto já uma plataforma de grandes dimensões (na altura o que havia eram espaços com menos 5000 m²) que já revelava uma ambição e capacidade de desenvolver a prestação dos serviços logísticos, com um horizonte bastante alargado.

Em 1993, a logística era um conceito emergente. O que existia à época era a convicção que a otimização do custo e do nível de serviço era feita através da otimização independente da armazenagem e do transporte. A ideia de que eram funções interdependentes não era óbvia; quer dizer que quando se reduz o custo do armazenamento, o custo do transporte pode aumentar e vice-versa, e assim a otimização independente não otimizava a soma dos custos e o nível de serviço ao cliente.

No entanto o Grupo Luís Simões reconheceu como alguns outros a oportunidade e tinha-se munido de conhecimento e experiência de um operador francês com quem se associou, mostrando assim a determinação em assegurar uma posição de referência nesse mercado emergente.

 

- Como é que a Logistema impulsionou a operação do Grupo Luís Simões?

Bem, é preciso dizer que o Grupo Luís Simões tinha as suas instalações, onde ainda hoje tem a sua sede, a norte de Loures em Moninhos, e procurávamos que a plataforma logística futura para desenvolvimento dos seus serviços estivesse na zona da grande Lisboa.

Quando o Grupo Luís Simões identificou um terreno no Carregado, que já era assim um bocadinho fora de portas, a Logistema já tinha experiência em desenvolver infra-estruturas logísticas a 40km de distância e por isso estudámos e validámos o terreno e iniciámos o arranque desse desenvolvimento.

Uma plataforma com cerca de 32000 m², que era algo absolutamente gigantesco para a época, estava completamente fora do que seria considerado na altura comum e de bom senso. Isto para sublinhar que foi uma enormíssima jogada de risco, por parte do Grupo Luís Simões e muito apoiada e incentivada por nós.

A Logistema criou essa plataforma de raíz em termos de projeto logístico: com todas as componentes,  layout, processos, inclusivamente com o desenho logístico do edifício. Enfim, tudo aquilo que era necessário para dotar o Grupo Luís Simões de uma plataforma que fizesse face aos requisitos que já tinha de cumprir na altura e para o futuro, acima de tudo para o futuro.

E rapidamente, a infraestrutura tornou-se pequena, eu diria que demorou talvez 2 anos, no máximo, a saturar a capacidade.

 

camiao luis simoes 2

Fonte: luis-simoes.com

 

- Quais foram os principais desafios que enfrentaram no planeamento e na implementação do projeto? Algum inesperado?

Foram vários e muito interessantes, e com histórias muito interessantes.

O principal desafio foi projetar a procura e os requisitos logísticos. O Grupo Luís Simões enquanto 3PL tem que servir um conjunto de clientes com necessidades diversas e que se renovam ao longo do tempo. O estudo da otimização fica condicionado pela necessária flexibilidade e reatividade que é necessário manter ao menor custo.

Um outro era perceber qual seria o valor daquela infra-estrutura ao fim de 10 anos, para considerar os custos futuros em termos de amortização do edifício. Ora, o CEO, hoje o presidente, Sr. José Luís Simões, um dia, chega a uma reunião de projeto e diz, “Bom, vamos considerar que deste daqui 10 anos o valor edifício é zero, não sabemos o que vai acontecer. Pode ser que valha uma fortuna, pode ser que não valha nada. E, entretanto, o desenvolvimento da logística pode vir a ser feito noutras geografias e de outras formas que não estas e portanto vamos considerar zero.”. Com esta decisão, o Sr. José Luís Simões obrigou a que todos os custos da infraestrutura fossem amortizados, eliminando o risco no horizonte temporal de 10 anos.

 

Esta é uma história com interesse, porque existe a componente técnica e os modelos, mas depois tínhamos efetivamente a grande capacidade de decisão de quem lidera. 

 

Uma outra história interessante, começou pela decisão da parte do Grupo Luís Simões de fazer a gestão da obra internamente. Foi uma novidade para a época, fazer uma obra daquela dimensão e com aquele valor por administração direta, e foi realmente uma decisão muito corajosa.

Durante a obra, tivemos muitos e variados episódios interessantes relativamente às decisões que acabámos por tomar. Como, por exemplo, a meio do projeto integrado, tivemos de criar uma nova área de temperatura dirigida com frio negativo e positivo. Estava também definido que esta nova estrutura suportaria uma plataforma multifuncional que obrigaria um aumento de portas no futuro. Mais uma vez, por decisão do Sr. José Luís Simões a infra-estrutura ficou preparada com todas as portas necessárias para o médio/longo prazo.

Portanto, foi um projeto todo ele alvo de um conjunto importante de modelos quantitativos e dimensionamentos e também de decisões que o deixaram preparado para a eventualidade de o futuro poder ir num sentido ou noutro.

 

 - Qual foi o impacto deste projeto no negócio da Luís Simões, no curto prazo e no longo prazo?

Este projeto permitiu alavancar a posição de liderança do Grupo Luís Simões no mercado logístico de 3PL em Portugal pois colocou o Grupo, nessa altura, como sendo a única entidade, e sublinho, a única entidade, que tinha as condições objetivas para poder servir o mercado emergente de rápido desenvolvimento neste domínio. A necessidade existia, e mais ninguém, naquela altura, deu o passo com esta dimensão e com este arrojo.

Imagine-se o que era alguém que estava a começar naquela altura a fazer alguma coisa na logística com armazéns de 5000 m². O Grupo Luís Simões, naquela altura, em 93/94, já tinha 9000 m² e passou para 32000 m² em 1997. E nós tivemos muita responsabilidade em incentivar que a dimensão fosse logo essa de 32000 m², porque o terreno permitia construir 15000 m² + 17000 m², e houve bastantes dúvidas nessa altura em fazer só os 15000 m² ou 17000 m² e depois complementar numa segunda fase. E, quer as condições do mercado, quer o projeto que fizemos mostrou a evidência do valor em assumir a dimensão total. Mas todo o mérito segue para os acionistas e o seu CEO, que assumiram todo o risco.

Portanto, havia ali realmente uma grande vontade de liderar e este projeto permitiu efetivamente ao Grupo Luís Simões liderar a prestação de serviços logísticos em Portugal.

 

armazem LS

Fonte: luis-simoes.com

 

- Que lições foram retiradas desta intervenção?

Bom, desta intervenção ficaram várias lições.

A primeira das quais teve a ver com a grande importância do patrocínio do cliente ao mais alto nível nestes projetos, digamos assim. A proximidade ao projeto por parte da gestão de topo é fundamental, porque há um conjunto de decisões que vão tendo que ser tomadas à medida que o projeto se vai desenvolvendo.

Depois, a qualidade da equipa de projeto do lado do cliente é fundamental. E foi isso que permitiu, depois destes anos, que possam levar ainda hoje de forma autónoma projetos cada vez mais complexos e arrojados no Grupo Luís Simões.

Aliás, uma das coisas que nos define na Logistema, a nossa matriz, é que nós fazemos sempre o possível para que o cliente fique dotado das competências para poder ele próprio ser autónomo. Não fomentamos, nem criamos condições para poder continuar a ser necessária a nossa intervenção, tão profunda e tão extensa quanto a que fazemos inicialmente.

Por último, uma terceira lição, se conseguirmos criar uma relação de simbiose tremenda entre a equipa Logistema e a equipa do cliente, quanto mais entrosadas forem as equipas, quanto melhores forem as equipas do cliente, melhor será o resultado final.

 

E nós, naturalmente, orgulhamo-nos muito de ter feito parte dessas decisões e desse trabalho, que deixou um marco importantíssimo na história do Grupo Luís Simões no domínio da logística. 

 

 

Na segunda parte da entrevista, Ricardo Félix recorda o impacto e a evolução que estes primeiros projetos desencadearam nos serviços e nas operações da Logistema.